Relatório I OftalGest

Viana do Castelo 17-18 de Junho de 2022
Serviço de Oftalmologia da Unidade Local de Saúde do Alto Minho

1. A importância do conceito

Organizado pelo Serviço de Oftalmologia da Unidade Local de Saude do Alto Minho, o I OFTALGEST constituiu a primeira reunião de dimensão nacional, organizada por uma especialidade médica, exclusivamente dedicada à sua gestão, e que reúne todos os stakeholders envolvidos no exercício da sua atividade e no planeamento do seu futuro.

No local estiveram representados o Ministério da Saúde, ACSS, ARSs, Secretário Regional da Saúde da Madeira, Direção Geral da Saúde (DGS), Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), Ordem dos Médicos (OM), Colégio da Especialidade de Oftalmologia, Sociedade Portuguesa de Oftalmologia (SPO), Direções de Serviço e Conselhos de Administração de todo o país, Ordem dos Farmacêuticos, Colégio de Farmácia Hospitalar, Ordem dos Enfermeiros, Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (MGF), Associação Portuguesa de Ortoptistas (APOR), Apifarma, membros do Conselho Nacional da Saude, Convenção Nacional da Saúde, Associação Portuguesa de Engenharia e Gestão de Saúde, Grupos Parlamentares da Assembleia da República, entre muitas outras entidades, cujas presenças validam e credibilizam a iniciativa.

O I OFTALGEST redefine um novo paradigma. Marca um ponto de viragem na forma como se pensa, se debate e se implementa a saúde em Portugal. Representa um novo formato para uma nova cultura integradora, inclusiva, abrangente, estrutural e multidimensional. É o primeiro passo em direção a um novo SNS por que todos aspiramos, e no qual somos todos solução.

2. A importância da Oftalmologia

A dimensão social da Oftalmologia vai muito para além de conservar ou devolver a visão ao doente. É tambem devolver-lhe a sua autonomia enquanto cidadão, a sua dignidade enquanto ser humano, e no limite, devolver-lhe um sentido para a sua existência. As consequências da incapacidade visual da população para o sistema de saúde e para a sociedade representam um enorme impacto a nível moral, social, e económico.

A dimensão assistencial da especialidade é reconhecida de forma consensual. Os números são claros: A Oftalmologia é a especialidade médica hospitalar mais solicitada pelos Cuidados de Saúde Primários, e simultaneamente a especialidade que mais consultas e primeiras consultas realiza por ano, e mais cirurgias por ano (30% do total de cirurgias no SNS).

A dimensão da oftalmologia no financiamento das instituições onde exerce a sua atividade é unanime. Tendo em consideração o atual modelo de financiamento das instituições hospitalares, baseado em volume de atos, a Oftalmologia assume-se, inquestionavelmente, como a especialidade mais importante no financiamento destas instituições.

A Oftalmologia deve, pela sua preponderância e pelas suas particularidades, merecer a atenção dos órgão decisores, assumir a liderança do processo de evolução que é necessário implementar no SNS, e constituir-se como referência para que outras especialidades possam seguir os seus passos.

3. O estado da Oftalmologia no SNS

Apesar das reconhecidas produtividade e qualidade dos cuidados disponibilizados, o exercício da atividade da especialidade encontra-se altamente condicionada no SNS, a vários níveis.

O panorama atual da oftalmologia no SNS é preocupante. Em 2019, 45% das consultas e 20% das cirurgias ficaram fora dos tempos máximo de resposta garantida (TMRG). Estes dados indicam que uma porção considerável dos doentes não recebe os cuidados de saúde de que necessitam em tempo útil, e retratam a insuficiência do atual modelo do SNS. Este panorama terá certamente sido agravado pelo impacto da pandemia.

As assimetrias registadas nas diferentes localidades do país colocam em causa os valores de equidade e universalidade em que assenta em SNS e potenciam as dificuldades que o sistema de saúde enfrenta.

Relativamente aos recursos humanos, estão registados na ordem dos médicos 1154 oftalmologistas. Destes, mais de metade não exerce atividade no SNS. Atualmente cerca de 450 oftalmologistas mantêm atividade no SNS, e quando convertido para EDC, o número cai abaixo dos 400 médicos, o que corresponde a um ratio de 0,8 oftalmologista por mil habitantes, inferior ao ratio recomendado. Um estudo demográfico recentemente realizado pelo Colégio conclui que dos oftalmologistas que exercem no SNS, mais de metade tem mais de 55 anos, e cerca de 40% pretende reduzir, a curto prazo, a sua carga horaria no SNS.

Atualmente, a capacidade formativa de internos ronda os 20 especialistas por ano, sendo que atualmente apenas 17 serviços mantém idoneidade formativa. Em todo o país, apenas 24 oftalmologistas encontram-se no topo da carreira.

Também o défice de ortoptistas nos serviços de oftalmologia condiciona as suas atividades com consequente impacto nas suas produtividades.

4. O futuro da Oftalmologia

O envelhecimento da população, e consequentes aumentos da incidência e prevalência de patologias sistémicas e oftalmológicas, aumentarão, obrigatoriamente, a pressão no sistema de saúde. É fundamental que a capacidade de resposta acompanhe o aumento das necessidades, sem descurar a qualidade dos cuidados prestados.

Urge implementar, para cada grupo de patologias definido, as linhas estratégicas previstas na estratégia para a saude da visão apresentada em 2018:

  1. Patologia que gera pressão no sistema: Erros refrativos e catarata. O envelhecimento e a urbanização da população originará um aumento significativo da prevalência de catarata e de erros refrativos, nomeadamente da miopia.
  2. Patologia causadora de cegueira irreversível: Ambliopia, Retinopatia Diabética, Glaucoma e Degenerescência Macular relacionada com a Idade (DMI), que, constituindo patologias clinicamente mais impactantes, são também fonte de grande pressão no sistema.
  3. Patologia com janela terapêutica estreita: Retinopatia da Prematuridade (ROP), Descolamento de Retina (DR), endoftalmite, e patologia neuroftalmológica.

É por isso “fundamental planearmos hoje, o sistema de saúde que queremos para 2040” (Miguel Guimarães – Bastonário OM)

5. Recursos humanos

O capital humano é o fator primordial de qualquer instituição. A necessidade de aumentar os recursos humanos de Oftalmologia no SNS é consensual. A escassez de recursos tem colocado em risco a atividade programada e tambem os serviços de urgência que já estiveram na iminência de encerrar na área metropolitana de Lisboa.

O número de recém especialistas que abandona a sua atividade no SNS imediatamente após a conclusão da sua formação específica aumenta de forma progressiva. Assistimos diariamente ao êxodo de especialistas de diferentes escalões etários para o setor privado ou para o exterior, e a pedidos de redução de horário no SNS. Mantendo-se as atuais condições no SNS, o aumento de vagas na especialidade não se apresenta como solução eficaz, pois não altera as causas que estão na origem da saída dos profissionais, e resultará a curto prazo no provimento dos grandes grupos privados, e a médio prazo, na emigração de profissionais qualificados para o estrangeiro. A insuficiência do número de vagas para a formação especifica como causa da insuficiência de profissionais, é enganadora, como se depreende do número de vagas atribuídas ser habitualmente inferior às vagas solicitadas pelos serviços, e pelas vagas que ficam por preencher, o que reflete a preferência dos recém especialistas em privilegiar a sua atividade privada.

Metade dos oftalmologistas não exerce no SNS. Aqui reside a solução. A reinserção de alguns destes profissionais no SNS, a retenção dos profissionais que atualmente exercem no SNS e o aumento da sua disponibilidade, permitiria o aumento dos recursos humanos necessários de forma mais rápida, mais estável, mais eficiente e economicamente mais sustentável, aumentando a capacidade de resposta do SNS. Para tal é fundamental recredibilizar as carreiras médicas, redefinir vencimentos e modalidades de pagamento dos profissionais, implementar incentivos, atualizar infraestruturas e parque de equipamentos, oferecer projetos profissionais atrativos que permitam a realização profissional que incluam formação académica, diferenciação técnica, e investigação.

A partilha de recursos entre entidades centrais e periféricas pode representar uma mais valia nos Serviços mais isolados onde o acesso dos doentes e as técnicas disponibilizadas são mais limitados. Esta possibilidade deverá ser alvo de análise de forma a avaliar a viabilidade da sua implementação.

6. Formação especifica

A qualidade da formação especifica dos oftalmologistas é reconhecida internacionalmente. Este nível de excelência não pode ser prejudicado pela carência de recursos no SNS. Não é admissível que internos possam compensar o défice de especialistas colocando em risco, por um lado, a qualidade dos cuidados prestados no presente, e por outro, a qualidade da sua formação para o futuro. É fundamental manter a qualidade da formação na oftalmologia e por isso manter o ratio adequado interno/especialista, a exigência do processo, e dos critérios para atribuição de idoneidade, de forma a não hipotecarmos o futuro da qualidade dos cuidados oftalmológicos.

Foi reforçada a possibilidade, previamente apresentada, dos internos da formação especifica realizarem parte do internato em hospitais periféricos.

7. Autonomia

Este afigura-se como maior desafio a nível estrutural, mas simultaneamente, aquele com maior impacto no funcionamento dos hospitais. A prestação de cuidados de saúde não pode estar refém da complexidade e morosidade dos processos burocráticos necessários na resolução dos problemas que surgem diariamente no exercício da atividade de um Hospital. Não é aceitável que recém nascidos prematuros não possam ser devidamente observados porque o processo administrativo associado à compra de um equipamento requer 7 assinaturas, e é de tal forma lento que frequentemente passa para o exercício seguinte. Um bloco operatório não pode parar por falta de anestesistas quando estes estão disponíveis. A incapacidade de contratar um medico com diferenciação em oftalmologia pediatrica não pode hipotecar o sucesso de um rastreio de âmbito nacional. Numa altura em que tanto se  promove a eficiência, a burocratização constitui provavelmente o principal entrave à sua implementação. O sistema não pode “estar montado para não funcionar” (Prof. Doutor Fernando Araújo – Pres. Conselho Administração CHU São João). Urge capacitar os hospitais de maior autonomia, que necessariamente se acompanhará de maior responsabilização.

8. Contratualização e Financiamento

O processo de contratualização e as modalidades de financiamento definem as condições em que é exercida a atividade dos hospitais e são reconhecidamente influenciadores de comportamentos em todos os patamares das estruturas.

A contratualização de atos (consultas e cirurgias) não contempla a valorização da qualidade dos processos, nem os resultados obtidos.

O financiamento das instituições em função dos atos contratualizados propicia o excesso de tratamentos desnecessários, a promoção de cirurgias mais rápidas em detrimento de cirurgias mais demoradas, e a compensação de défices de algumas especialidades com a promoção de atividade de outras, prejudicando consequentemente alguns doentes em detrimento de outros, pondo em causa a equidade do acesso no SNS.

É necessário rever as modalidades de financiamento das instituições, assim como dos profissionais, através de incentivos de acordo com o atingimento de objetivos predefinidos que valorizem a qualidade, a complexidade, os resultados obtidos e o valor para o doente.

Visando a eficiência do sistema da saude, mais importante que o processo de contratualização ou as modalidades de financiamento implementadas, é o seu alinhamento ao longo de toda a estrutura.

9. Criação de uma plataforma de Cuidados Primários de Visão

Esta constitui provavelmente a maior prioridade e simultaneamente o maior desafio para a evolução da Oftalmologia no SNS. Esta plataforma contempla a criação de rastreios de ambliopia e retinopatia diabética, criação de pontos de avaliação básicas de oftalmologia (PABOs) e Pontos de Intervenção Única (PIUs) para despiste de glaucoma e DMI em doentes com 60 anos. Além de promover o acesso, cuidados de proximidade, equidade e universalidade, a descentralização dos cuidados básicos de Oftalmologia, liberta as estruturas hospitalares para atividades de maior diferenciação, diminuindo a aglomeração de doentes nas suas instalações subdimensionadas para a atividade dos serviços.

Esta plataforma permite aumentar o número de postos de trabalho, permitindo a inclusão de novos profissionais no SNS, sem alteração das sobrelotadas infraestruturas hospitalares. Promove a articulação dos oftalmologistas com os médicos de MGF, a integração de cuidados, a eficiência, e coloca, verdadeiramente, o doente no centro do sistema.

Naturalmente, a realização de rastreios e despistes de patologia, gerará maior pressão no sistema, cuja resposta terá que acompanhar o aumento das necessidades, mas resultará a médio prazo em ganhos em saúde, maior sustentabilidade, e valor para o doente.

Estas equipas poderão naturalmente incluir outros grupos profissionais, mas deverão sempre, sem exceção, estar sob coordenação de um oftalmologista.

10. Promoção da saúde/Prevenção

Este é o conceito chave na preparação do sistema de saude do futuro. O sistema deve fazer a transição da atual medicina curativa (mais dispendiosa), para a medicina preventiva (mais sustentável). O aumento das necessidades associadas ao envelhecimento da população e a escassez de recursos humanos e financeiros disponíveis originará uma maior pressão clínica e económica no sistema de saúde. A introdução de novas tecnologias e novos fármacos, a promoção da literacia em saúde terão um papel importante, assim como a identificação de pessoas em risco e o diagnóstico precoce das patologias, numa fase em que o seu tratamento está mais acessível, mais próximo e é mais sustentável. Urge atenuar as consequências clinicas, sociais e económicas das fases mais avançadas das doenças, quer para os doentes, quer para o sistema. A organização do sistema de saúde não pode, por isso, continuar centrada no tratamento da doença. O foco deve estar na promoção da saúde. Nesse âmbito, a promoção de estilos de vida saudáveis são essenciais. Também os rastreios constituem uma linha estratégica que deve ser otimizada. Na oftalmologia, além dos rastreios da retinopatia diabética e da saúde visual infantil já instituídos, também os despistes de patologias como glaucoma e DMI são fundamentais de forma a prevenir cegueiras irreversíveis e maiores encargos para os hospitais. Não podemos esperar que o doente chegue ao sistema, é o sistema que deve ir ao encontro do cidadão.

11. Competitividade do SNS

O SNS encontra-se numa encruzilhada. A sua capacidade de resposta não é, objetivamente, suficiente para as necessidades crescentes da população. Os seus recursos humanos abandonam-no para o setor privado. O atual modelo não promove nem premeia a eficiência, pelo contrário, promove o desperdício, a desmotivação e a estagnação. O processo burocrático, a falta de autonomia das instituições dificultam a resolução de problemas, originam mau investimento, repetição de despesas, lesando o SNS, os doentes e os profissionais. O futuro não se apresenta animador. O envelhecimento da população pressupõe um aumento dessas necessidades, dos custos associados, das pressões sobre os profissionais, e com cada vez menos profissionais qualificados. A solução tem sido insistir no mesmo modelo, e obrigar as pessoas a ficar no SNS até terem a oportunidade de sair. É tempo de mudar. Já. É tempo de ter a ousadia de pensar que é possivel construir um SNS capaz de recrutar profissionais ao setor privado.

Os centros de responsabilidade integrada podem constituir um passo nessa direção. Porque se apresentam como solução para vários problemas: Maior autonomia, alinhamento das modalidades de financiamento, introdução de incentivos atribuídos em função da obtenção de objetivos individuais ou coletivos, que podem incidir em qualquer área, capaz de atrair e reter profissionais, promovendo a sua mobilização e união à volta das mesmas metas, o espirito de equipa e entreajuda, e o reconhecimento do esforço dos profissionais. A atribuição de incentivos para o CRI abre a porta à formação, à renovação de instalações e equipamentos. Criando as condições para que os profissionais escolham permanecer no SNS.

Simultaneamente, e relativamente aos benefícios para o sistema, aumentam o acesso, otimizam os recursos, aumentam a qualidade dos cuidados, diminuem o desperdício, aumentam a eficiência dos serviços e consequentemente a sua produtividade. E sobretudo, permitem atrair e fixar profissionais no SNS, elemento fundamental na solução desta equação. 

Este modelo deve ser promovido e devidamente implementado na Oftalmologia, e de uma forma global no SNS, adaptando o modelo a cada realidade.

12. Criação de grupos de trabalho:

Visando a criação de propostas concretas que materializem os temas debatidos, foram criados 3 grupos de trabalho multidisciplinares especificamente dirigidos a áreas fundamentais no exercício atual da oftalmologia no SNS:

  1. Plataforma de Cuidados Primários de Saúde Visual
  2. Modelos de Referenciação na Oftalmologia
    1. Referenciação de doentes: Urgência
    2. Referenciação de Informação: Retinopatia da prematuridade
    3. Referenciação de profissionais: Vitrectomia
  3. Modalidades de Financiamento de doentes com Retinopatia Diabética e DMI

A multidisciplinaridade destes grupos, cuja constituição será brevemente apresentada, reflete o espirito do OFTALGEST, credibilizará os resultados e conclusões obtidas, assumindo-se como um passo importante para a criação de consensos que permitam a implementação de medidas que resultem em valor para os doentes e para o sistema de Saúde.

 

Este, é o momento.

Sérgio Azevedo – Coordenador projeto OFTALGEST

Augusto Magalhães – Presidente do Colégio da Especialidade de Oftalmologia da Ordem dos Médicos

Rufino Silva – Presidente da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia

Xavier Barreto – Presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares

Vitor Herdeiro – Presidente do Conselho Diretivo da ACSS

João Pedro Vieira – Adjunto de Secretário de Estado da Saúde

Nuno Jacinto – Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

João Ribeiro – Ordem dos Farmacêuticos, e Presidente do Colégio de Farmácia Hospitalar

José Luis Pires dos Santos – Ordem dos Enfermeiros

Eurico Alves – Presidente da Convenção Nacional de Saúde